"Não sou este corpo que possui um espírito, mas sou o Espírito que fala por este corpo."

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A Carne é Fraca ?

A Carne é Fraca?
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Saiu de casa atrasada, passos largos sobre o salto médio a conduziam em busca da primeira lotação que passasse. Andréia, que costumava se embelezar e se maquiar bastante antes de ir para o trabalho, desta vez deu apenas poucas e boas borrifadas do seu preferido perfume e partiu. Cabelos soltos, óculos escuros, subiu depressa no coletivo, atirou algumas moedas ao trocador e logo ocupou um banco do par que estava vago.
O ônibus não estava cheio, restavam mais a frente ainda alguns lugares, Andréia distraia-se com a paisagem da janela próxima ao local que sentara, quando então percebeu outra pessoa que preencheu o lugar vazio ao seu lado. Tratava-se de um rapaz, roupa esportiva, portava duas mochilas pequenas e sentou-se com calma. A jovem Andréia seguia olhando pela janela, sem evitar dar uma rápida olhada para o moço, viu-o de perfil, passaram-se diversos minutos até que Andréia então o olhou outra vez, nessa última reparou-lhe a camisa vermelha e, ao fim, antes de voltar a sua contemplação urbana através da janela, fitou-lhe brevemente o jeans.
A administradora recém formada percebeu finalmente que dava várias olhadas para o colega passageiro e que, imotivadamente, estava paquerando-o. Parecia ser um estudante, sua análise se confirmou quando o rapaz puxou de uma das mochilas um fino caderno, o qual logo abriu e deu seguidas folheadas. Censurando seu próprio comportamento, Andréia tentou se policiar, no entanto, via-se quase que forçada a repará-lo, era mais forte do que ela, procurava distrações na rua, mas parecia que quanto mais tentava descentralizar o seu pensamento, sua mente a levava focar naquele homem ao seu lado, entorpecida por um já evidente desejo e pelo perfume do cavalheiro que sem pedir licença lhe invadia as narinas. Constrangida, temia que o jovem atentasse para a sua já indiscreta observação, o ônibus seguia trajeto, faltava ainda certo tempo para o fim do percurso.
Não era lindo, nem era feio, na conclusão de Andréia, era o estudante, muito charmoso. Alto e esguio, tinha porte médio-forte, ela olhava insistentemente para o caderno que o rapaz tinha em mãos, quando finalmente ele se virou e a olhou na face. Esperou que ele falasse alguma coisa, baixou a cabeça e logo em seguida o olhou novamente, estava a jovem visivelmente sem graça por achar que o moço tinha percebido sua paquera. Cheirava bem, e talvez isso tenha contribuído para aumentar a sua atração, parecia ser perfume importado. O que fazia um estudante usando perfume importado num ônibus pela manhã? Estaria indo pra faculdade, pós-graduação? Pela cara parecia ser estudante universitário. Andréia fazia diversos questionamentos particulares sobre a vida do homem que via pela primeira vez.
Por fim, o estudante guardou rapidamente o caderno na mochila maior e levantou olhando mais uma vez diretamente ao rosto de Andréia. Era mais alto do que ela tinha calculado e em alguns momentos de sobriedade, em contraste com o fascínio que a possuía, a administradora perguntava-se por que agira assim, encarando-o desse modo e, por mais que tentasse desviar seu pensamento, por que fora levada a ficar o curso inteiro da viagem estudando e examinando aquele desconhecido rapaz. Não sabia quem ele era, não queria agir inconvenientemente, contudo, não podia negar a si mesma que tinha lhe chamado muito a atenção. Interrompeu suas próprias indagações quando notou que a mochila menor estava ali, posicionada do seu lado, o estudante tinha esquecido. Ou teria deixado ali propositalmente? Sem raciocinar nada, agarrou a bolsa e colocou o rosto na janela, onde do lado de fora o moço acabara de soltar e estava ainda caminhando em outra direção, o ônibus começava a se movimentar lentamente após a parada onde o rapaz desceu. Hei! Gritou Andréia para o jovem, levantando logo após e deixando o motorista e mais todos da condução perceberem que sem dúvidas ela queria também soltar naquele lugar. Deu um rápido “obrigada” ao sair do coletivo e foi na direção do até então estranho que lhe despertou o súbito interesse.
Poderia ter sido oprimida por uma voz interior perguntando o que é que ela tinha acabado de fazer, por que tinha descido muito antes do seu ponto habitual para entregar o objeto de uma pessoa desconhecida, quando no máximo devia ter lhe atirado a mochila pela janela. Poderia ter sido inquirida por essa voz da sua consciência, porém, não houve tempo pra isso. Quando percebeu, Andréia já estava fora do ônibus, de frente para o rapaz. Você esqueceu sua mochila. Disse ela sorrindo, tendo como retribuição um também largo sorriso do moço que a acompanhou na curta viagem.
Seria apenas o começo de mais um belo flerte entre um jovem casal, não fosse por um importante detalhe. Andréia é noiva de Sérgio. Noivaram havia 6 meses, e ao contrário do que possam estar pensando, o relacionamento de ambos ia muito bem sim, de fato.
Ainda sem desmanchar o sorriso na cara, Andréia entregou a mochila ao rapaz que disse logo: Obrigado!
– De nada. Respondeu ela, num olhar típico de: estou te dando muito mole”. Ainda sem cair a ficha do que estava acontecendo.
A moça ia se afastando para voltar ao mundo real e tomar de novo outra condução, afinal, tinha soltado repentinamente do coletivo e ainda lhe faltava muito para chegar ao trabalho.
– Você ia soltar também aqui? Indagou antes que Andréia se virasse por completo.
– Não.
– Soltou só pra me devolver?
Andréia corou a face e coçou levemente a nuca, comportamento típico que realizava sempre que se via numa saia justa deixando-a sem graça.
– Puxa, me deixe ao menos lhe pagar uma nova passagem, em agradecimento. Disse o moço gentilmente, mas também com certa malícia, a maledicência característica que se esconde por trás da maioria das gentilezas dos homens frente a uma bela mulher.
– Não, obrigada.
– Telefone? Insistiu bem direto o jovem.
– Como?
– Tem telefone?
– Tenho, mas não posso.
Parecia Andréia finalmente ter lembrado do seu compromisso e notado a proporção que aquilo já estava tomando. No entanto, ainda assim, até aquele ponto, sentia-se atraída pelo estudante, porém agora tentava lutar mais contra a sua tentação.
– Tudo bem. Vou te dar o meu então.
Rapidamente o universitário puxou um pedaço de papel do bolso e uma caneta da mochila devolvida. Estranho como os rapazes costumam andar com pedaços devidamente cortados de papel em seus bolsos, e agem com tamanha habilidade para anotar e remeter seu telefone, de um modo suspeito e talvez premeditado. Seria mais fácil que andasse com seu cartão de visitas, mas certamente assim a cara de pau seria maior.
– Não posso aceitar...
Antes que concluísse a frase o papel já estava dobrado dentro de uma das mão de Andréia, mão esta que era envolvida pelas mãos do rapaz, num contato que, para aumentar a perturbação da jovem, lhe causava satisfação.
Sem mais investidas, o desconhecido estudante manteve-se desconhecido, soltou-lhe as mãos e seguiu olhando pela última vez para trás. Esboçou um curto e ousado sorriso, deixando claro que dependia só dela ir adiante ou não. Andréia estava absurdamente furiosa consigo mesma, a consciência pesava-lhe forte, sentia-se mal, mas tal sentimento não a impediu de ficar hipnotizada acompanhando a saída do jovem, enquanto ele lhe sorria marotamente.
Depois de se distanciar alguns metros do ponto onde se encontraram e trocaram palavras, Andréia pegou o papel que ainda tinha em mãos e picotou-o em muitos pedaços, deixando serem levados ao bel prazer do vento da cidade, enquanto ela apertava novamente seus passos no sentido do próximo ponto. Estava atrasada, pensou em Sérgio e tratou logo de esquecer o que tinha ocorrido, mas no fundo sabia que, embora tivesse ficado pouco mais de meia hora próxima do rapaz, nunca se sentira atraída desta forma por ninguém antes em sua vida. E experimentou um profundo e proibido desejo, que talvez, pudesse experimentar de novo algum dia.
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Raphael V. Tavares

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Olhe pro Teto

Olhe pro Teto


A vida passa e muito raramente lembramos de parar e olhar pro teto. Vou explicar. Todo mundo vive certos instantes em que se vê invadido de milhares de pensamentos, então, como que numa atitude de análise e auto-conhecimento, deitamo-nos e paramos com o olhar fixado para o teto. O olhar para o tetonos leva as mais importantes decisões e reflexões, é o momento onde conversamos conosco e exercitamos o imperativo: Conheça-te a ti mesmo. Geralmente somos conduzidos a olhar o teto sem querer, não lembramos muito dessa atividade, do tipo: Anotar na agenda, hoje vou deitar e ficar viajando, pensando em mim, na minha vida, talvez pense em Deus, talvez pense em futebol, pensarei em alguma menina, deitar e não pensar em absolutamente nada. Hoje vou olhar pro teto.
Muitas vezes olhei para o teto acompanhado do meu irmão. Dividíamos o mesmo quarto e eu sempre tentei utilizar a minha olhada de tetoinstantes antes de eu dormir. Na verdade este estado de ficar paradão, olhando pro nada, não precisa necessariamente ter como ponto o teto, nem precisa estar deitado na cama, num quarto. O que conta é o comportamento do olhar fixo, mente longe, pensamentos a mil, vocês sabem do que estou falando. Mas lembro que muitas vezes viajei nos meus pensamentos enquanto Vitor fazia alguma outra coisa simultaneamente em nosso quarto, falava ao telefone, conversava na internet, em alguns momentos olhamos para o teto juntos, é disto que mais sinto falta.
Nostálgico como sou, conduzia-o facilmente nas minhas memórias, as quais ele embarcava recordando comigo. Nossas olhadas de teto juntos pareciam mais verdadeiras sessões de lembranças, dividíamos dúvidas, dávamos nossas próprias opiniões e conclusões, quase sempre não falávamos olhando um ao outro, era ele deitado em sua cama, eu na minha, na nossa frente apenas o teto. Após, dávamos boa noite e virávamos no sono, mas não raro, íamos madrugada a dentro nessa nossa olhada.
Certa vez conversamos bastante a respeito da viajem que ele tinha feito à Porto Seguro, as aventuras, brincadeiras, bebedeiras. Um imã trazido por ele como lembrança dessa viajem ainda se encontra na geladeira de casa, hoje não está o imã tão invernizado, como quando ele trouxe bronzeado, mostrando-nos feliz por ter chegado, cada ano que passa, fica o imã na geladeira mais desbotado. E depois dessa viagem, pudemos olhar juntos pro teto, porque desta viagem, ao menos desta viagem, ele pôde ter retornado.
Noutra consulta dessa olhada de teto que fiz com ele, resolvemos mirar nas loucas e mais despretensiosas brincadeiras que fazíamos anos atrás. Sem trabalho, férias escolares, os dois juntos dentro de casa, inventávamos bobeiras e brincadeiras para tarde poder passar logo. Como eu queria por alguns instantes, viver de bobeiras como vivia antes e esquecer qualquer problema ou compromisso que a vida me obriga a tragar. Uma guerra de cosquinhas, uma gargalhada estrondosa e desestressante, batalha de almofadas no sofá, músicas inventadas sem nenhum critério e cantadas por nós como dois bêbados loucos, rindo e vivendo, enquanto terminava mais um filme da Sessão da Tarde.
Numa noite, lembro que olhei pro teto recordando das gravações que fazíamos na secretária eletrônica, Vitor via alguma coisa no computador, enquanto eu observava o teto lembrando e falando com ele sobre isso. Gravamos vários minutos na secretária, cantando empolgadamente funks e rap’s, como se estivéssemos de fato numa gravadora, pra depois ouvirmos nossas próprias vozes desafinadas e então rirmos bastante. Hoje, como queria escutar aquela tua voz rouca, e se tivesse uma mensagem gravada sua, ouviria diversas vezes, em casa ou na rua, relembrando dos nossos rap’s e da nossa dupla de Mc’s.
Outra vez, e dessa vez me lembro muito bem, resolvemos olhar pro teto e relembrar dos amigos nossos da rua que já tinham partido. Alguns colegas que jogavam bola conosco, jogavam fliperama, batiam papo, e que de repente, tomaram a viagem que tempos depois Vitor também tomou. Falava ele com espanto: Fulano estava entre nós, jogando bola na quadra outro dia, e agora.... A maioria destes colegas tinha tido morte violenta, alguns provavelmente envolvidos com situações comprometedoras, que contribuíram para suas próprias jornadas. O mais inesperado e até assustador, é que o companheiro que olhava pro teto comigo anos atrás, indagando-se quanto aos porquês da vida, partira ele também nessa estrada bandida. Poderia ter ido eu, poderia ter ido você, mas então, foi ele.
E agora olho sozinho para o meu teto, fico de bobo tentando bancar o esperto, mas sei de algo que pra mim é bem certo, eu sei que você está longe, mas posso sentir você perto.
Porque se a cada lembrança o pensamento pode voar, e se o nosso teto está muito além do que a telha possa agasalhar, então prefiro crer que meu teto é o infinito. Que se eu acreditar, olho para o universo, e de lá, você sente o meu afeto.
Boa noite irmão, olhe para o nosso teto.
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Raphael V. Tavares


O mal é a ausência do bem, assim como a escuridão é a ausência da luz.
Desta lógica, um dia será inadequado usar a palavra “morte” para falar da situação dos que já se foram, pois que a morte é a ausência da vida, mas aqueles que partiram ainda vivem, numa vida paralela a nossa!