A Casa das Lembranças
A casa fica numa rua, uma bem simplesinha, situada num pequeno bairro da cidade na Baixada Fluminense. Muitos que passaram nessa rua, se quer imaginaram que ela estava ali, já que é uma casa de fundos, entra-se numa estreita vila e depois de alguns metros é possível então avistá-la. Não sei precisar a sua área em metros quadrados, mas a área que ocupa em minha alma e em meus pensamentos é de larga jarda. Ela é grande, pelo menos era enorme quando eu era criança e vivia nela, mas mesmo hoje ainda a considero uma casa grande, tem uma piscina de cerca de 7 metros, e um quintal que somado ao espaço da piscina cobre um terreno de saudades e de nostalgias. Quando chegamos nela, na tenra idade, era lá o nosso mundo encantado, o espaço das nossas inocentes fantasias e passou por muitos anos como ambiente da nossa vivência.
Certa vez arrisquei aproximar-me dela, após longo tempo da mudança, outras vezes depois também fui até aquele bairro, mas lembro-me dessa ocasião em especial. Cheguei à rua e subi pelo terreno vizinho, um terreno aberto sem portão, onde morava um amigo nosso, o terreno estava igual, seus matos crescidos com espaços de terra batida e pedras, onde jogamos tantas vezes bola e passamos tardes preciosas e distantes, conversando ou brincando de outra coisa por ali. Logo estava na fronteira com a casa, o muro do vizinho é o mesmo que divide os terrenos, só que num plano bem mais alto, o que me possibilitou ter uma visão inteira do meu antigo quintal. Apoiei no muro, perto do telhado da varanda, não sei ao certo quanto tempo fiquei por ali, naquele mesmo lugar, naquela mesma posição sem me mover, talvez 20 minutos ou mais, foi o período que durou a minha viagem no tempo.
Avistei o canteiro de plantas, as plantas tão queridas e tão cuidadas por minha mãe, logo veio à mente a imagem daqueles sábados ensolarados, mamãe acordava cedo, usava luvas e ferramentas de jardinagem, cuidando delas com muito carinho. Quase pude sentir novamente o cheiro da terra molhada, nas tardes em que Céia, a antiga empregada, molhava o canteiro usando a borracha que era emendada no meio com um pedaço de fita isolante, a riqueza dos detalhes era impressionante, eu nunca achei que fosse gostar tanto do cheiro da terra molhada depois daqueles dias e também não achei que um simples cheiro fosse significar tanto pra mim. Mais a frente, fitei o outro lado do muro, coberto por um chapisco que já estava descascado, mas que na minha época era bem inteiro, lembrei das brincadeiras que inventava com meu irmão naquele mesmo muro que estava ali diante de mim. "É tão estranho..." pensei. É só um muro, mas como podem objetos estar tão carregados de sentimentos? Nas manhãs ociosas, quando crianças e só estudávamos à tarde, tentávamos escalar o muro de ponta a ponta sem cair, algo ingênuo e até estúpido hoje, mas como era bom esse doce gosto da ingenuidade.
Sexta-feira era o dia da faxina, e a empregada bravamente conseguia dar conta com a gente andando pela casa, passava uma cera com um cheiro característico nas pedras de ardósia e lembro do brilho nos finais de tarde da sexta-feira, um brilho que não esqueço mais. Seguindo para o quintal de trás, ficava a área de serviço, que não podia ser avistada de onde eu estava, mas que me recordo tão bem que é como se estivesse lá agora. Um banheiro do lado de fora, além do que ficava lá dentro, o varal de roupas que vivia esticado por um velho pedaço de bambu, a máquina de lavar antiga e grande, e já perto do portão de fundos, a casa de Duque, o fiel cachorro que vivia conosco. Os vizinhos passavam conversando perto do portão ou então uns colegas vinham chamar, tocando a campainha, daí o cão rodopiava como louco, muito rápido, e ladrava incansavelmente, enquanto os meninos entravam para mais um dia de banho na piscina ou de futebol no quintal, vez ou outra um vizinho cumprimentava a Céia, que fazia os serviços lá nos fundos, a máquina de lavar trabalhava barulhenta e a manhã ia seguindo, em mais um dia no passado.
Nos finais de semana, a casa vivia cheia, parentes e amigos, o Sol do verão, colegas chegavam já usando roupa de banho por debaixo das suas bermudas. Um contato agradável que ela nos proporcionava através das reuniões na piscina, nos dando a impressão inconsciente e inocente de que os laços familiares e os laços de amizade tornar-se-iam mais fortes e eternos por causa destes divertidos e passageiros contatos. Aquela sensação boa de brincar como criança com os tios e primos, de falar besteira e fazer palhaçadas jogado na varanda, tudo isso a casa nos dava também, sempre acreditando estarmos seguros naquele nosso mundo, acreditando que a lágrima não chegaria nunca e que aquilo que era efêmero se esticaria por todo o por vir.
Voltando a observar o quintal da frente, avistei a piscina. Ah a piscina! Quantas e tantas brincadeiras tivemos ali, estava uma cor meio turva, diferente do azul límpido que meu pai a deixava, era cercada por alguns objetos, certamente dos inquilinos que agora vivem lá. A água parada e o ar imóvel naquele momento não traduziam os movimentados encontros que aconteceram ali. Podia ouvi-lo gritando, ver a disputa para quem pulava mais alto, as diversas brincadeiras criadas na água, quem conseguiria prender mais tempo a respiração mergulhando. Hipnotizado na minha viagem, não percebi quando o morador do terreno onde eu estava se aproximou me cumprimentando, lembrou-se da época em que morei ali, falei brevemente com ele e continuei no meu contemplamento.
Tudo isso estava ali, e ao mesmo tempo não estava mais, cenas tão fortes, o mais banal milésimo de segundo com meu irmão naquela casa, que eu daria tudo para que passasse de novo. Notei ainda uma bola próxima ao chuveiro, meio vazia. "Há quanto tempo não gasto alguns minutos brincando com uma bola? Há quanto tempo eu não brinco?" Concluía lamentando que aquilo ficou para trás, a infância passou, a brincadeira acabou, a casa mudou. Os parentes não aparecem mais, a visita não se refaz, os amigos já não chegam em casais.
Analisando hoje, tenho certeza que as saudades, as lembranças, as sensações e tudo mais, não estão diretamente ligados a "casa" e ligados aos objetos que estavam ali. Esses objetos, o ambiente, as paredes e o quintal, contribuíram apenas para a forma, o tempo se encarregará de destruí-los como destrói a tudo que é material. O gosto das tardes agradáveis, o som dos saltos na água com meu irmão, som de bola chutada contra o muro, do rádio tocando no final de semana e a visão do meu pai limpando os azulejos da piscina. Isso tudo não está ali, o local circunscrito serviu apenas como um valoroso palco, estas coisas estão em mim, escritas na minha consciência, e eu as carrego comigo independentemente do futuro da casa. São as abstrações inerentes ao espírito, que serão sempre acesas quando lá eu estiver, porém nunca apagadas, naquela que é, e sempre será, "a casa", mesmo quando ela nem estiver mais lá. Será sempre a casa que vai muito além do tijolo e do embolso, porquanto a casa se vai, mas as lembranças, estas são minhas.
Raphael V. Tavares