"Não sou este corpo que possui um espírito, mas sou o Espírito que fala por este corpo."

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Meu encontro com Caitríona Balfe


Fazia uma romântica manhã de inverno em Paris, eu caminhava próximo a Les Halles e entre a névoa e o embaçado dos meus óculos avistava as varandas dos cafés, onde casais discutiam num francês tão rápido e tão ríspido que mais parecia uma declaração de guerra. Não fazia a menor ideia de como eu havia parado ali, não lembrava de como tinha chegado à Europa, apenas tinha uma plena convicção de que deveria caminhar naquela direção, inconscientemente eu sabia exatamente para onde estava indo.

Sempre desejei conhecer a cidade luz, cidade do amor, caminhar as margens do Sena e visitar o Louvre, porém eu estava ali em Paris andando e não tinha noção de como aquilo havia se dado.

Continuei vagando à sombra da igreja St. Eustache quando então avistei de longe uma jovem elegante, instintivamente eu fui a sua direção, mas ela ainda não havia me notado. Ela era alta, usava um salto e um sobretudo, as luvas davam um charme final típico de uma moça francesa. Aproximei-me e a encarei, percebi então que ela parecia estar chorando, ela me olhou assustada e deve ter estranhado muito o meu comportamento. Como eu não falava francês e nem sabia o que fazia ali não tinha em mente o que dizer a ela, apenas sabia que eu precisava falar com aquela desconhecida.

Cheguei mais perto e arrisquei um "Hi there! Are you ok?" Ela permaneceu calada e percebi que minha tentativa constrangedora no inglês não havia dado muito certo.

Foi então que dei mais um passo em sua direção e notei que seu rosto me era familiar. Oh meu Deus, seria possível? Era ela, Caitríona Balfe, ou apenas Cait já que eu me sentia íntimo dela depois de tanto que havia lido a seu respeito nos últimos meses. Ela arregalou seus olhos azuis quando eu disse o seu nome e então pude ter certeza de que era ela mesma, porém estava muito mais jovem, aparentava ter uns 19 anos no máximo. Então não se tratava de uma francesa, mas sim da atriz irlandesa estrela de Outlander, bem ali na minha frente.

Ela perguntou como eu sabia seu nome, e de repente eu conseguia entender perfeitamente o seu inglês britânico, enquanto eu podia também falar tranquilamente de modo que ela me entendesse, essas coisas loucas que só acontecem em sonhos.

Expliquei que eu era um fã dela, que havia assistido ao seu papel em Outlander e que pesquisei sobre o trabalho dela, foi nesse momento que eu consegui ganhar um discreto sorriso, quando Caitríona me falou que era apenas uma modelo em início de carreira e que estava num contrato de uma agência em Paris.

Ali que eu me dei conta de que havia viajado no tempo, era a única resposta possível, eu havia voltado para a época em que Cait ainda estava no início da sua jornada de modelo na Europa. Pelas minhas contas e pela idade que ela aparentava, calculei que o ano deveria ser 1999 ou 2000. Mas por que isso teria acontecido?

Notei que os seus olhos ainda estavam um pouco vermelhos do choro e a convidei para um café, daí ela respondeu que já estava cansada dos cafés parisienses e que preferia alguma coisa que lembrasse mais o país natal dela, disse isso apontando para o que parecia ser um pub irlandês, fomos então até lá.

O nome do pub era Quigley’s Point, no caminho Cait ainda me olhava desconfiada, mas já estava mais à vontade e arriscava alguns sorrisos, provavelmente achando engraçado o meu jeito de falar e aquele meu papo louco. Entramos e o lugar era bem barulhento, ela me contou que precisava pedir uma cerveja irlandesa com uma porção de batatas fritas, eu ficava rindo e achando aquilo tudo muita loucura. De repente Caitríona Balfe estava bem ali conversando comigo, as mesmas características que eu havia observado nos vídeos dela e no seriado da Netflix, o seu leve estrabismo que não diminuía em nada o brilho do seu olhar, a sua risada marcante, curta e bem sonora, os trejeitos e principalmente o bom humor, ela era muito brincalhona apesar de ter acabado de me conhecer, tal como nos bastidores da série.

Enquanto brincava com uma batata Cait me contou que estava chorando quando eu a encontrei porque ela tinha acabado de ser humilhantemente rejeitada por um diretor num teste de modelos. Eu disse que ela não devia se preocupar com aquilo, num futuro próximo ela teria uma promissora carreira de modelo e depois ainda seria atriz estrelando uma série televisiva de muito sucesso.

Cait então deu sua risada característica e em seguida disse: "How can you know this?!" Contei a ela que eu era um viajante do tempo, exatamente como a personagem que ela interpretaria na série do futuro, mas pedi para que ela não me perguntasse detalhes porque eu mesmo não fazia ideia de como tinha chegado à Paris.

A jovem Cait sorria e certamente achava que aquilo tudo era uma grande piada vindo de um estranho engraçado. Fiquei alguns segundos parado fitando-a com o meu olhar extasiado, poucas vezes eu tinha me conectado tanto com uma personagem como ocorreu com Claire de Outlander, depois de pesquisar sobre a atriz por traz da cena eu me encantei com as histórias e a personalidade de Caitríona, a cada curiosidade nova sobre ela, a cada vídeo e entrevista novos, a minha admiração só aumentava. Permaneci olhando sem falar nada enquanto ela bebia sua cerveja irlandesa, pensei em explicar para ela o quanto a história dela e da sua personagem mexiam comigo, mas fiquei com medo de parecer piegas demais e permaneci calado.

Talvez tenha sido o meu fascínio por viagens no tempo que me fez fissurar na série Outlander, talvez tenha sido a beleza de Cait somada a sua impecável interpretação e à química dos personagens. Ao perceber que eu a observava de um modo congelado ela perguntou onde estava a minha esposa, enquanto olhava fixamente a minha aliança na mão esquerda. Respondi que eu havia me casado no futuro e que na volta ao passado a aliança veio comigo, exatamente como aconteceu com os personagens Claire e Frank na série.

Depois de mais algumas risadas e perguntas Cait me contou que precisava ir embora, no dia seguinte ela tinha que chegar cedo à agência Ford Models. Na hora de pagar percebi que eu não tinha nenhum dinheiro, ao notar o meu espanto Caitríona não perdeu tempo e disparou: Did you come unprepared of the future, traveler? [Veio desprevenido do futuro, viajante?] Seguida de uma grande gargalhada, me desculpei e saímos do pub rindo.

Do lado de fora fazia ainda mais frio do que quando entramos. Perguntei a ela onde a gente poderia se ver de novo, Cait então respondeu que costumava ir à Île de la Citê pelas manhãs nos fins de semana, “Se você não estiver de volta para o futuro, aparece!” disse sorrindo enquanto se afastava dando um tchauzinho. Confesso que eu fiquei esperando pelo menos um beijo no rosto de despedida, coisa de latino.

Voltando a caminhar pela cidade, num lampejo de memória veio à mente tudo que eu precisava fazer se quisesse voltar para casa, para a minha época. Eu sabia então perfeitamente onde estaria o tal portal da viagem que me trouxe.

Mas será que eu deveria voltar, ou já estava dominado pelos encantos de Paris?

 

Raphael V. Tavares

terça-feira, 10 de março de 2020

Segurança de Patas


Como de costume, sai apressado naquele dia em direção ao ponto da condução. Dia limpo, céu aberto, atravessei o portão do condomínio não sem antes oferecer um "bom dia" protocolar ao Porteiro.
Logo na travessia do passeio público, avistei doutro lado uma jovem senhora que também caminhava para o ponto, ladeada por um cão. O animal saltava ao redor dela, girava, dava pequenos pulos, corria até pouco mais a frente, depois voltava até quase tocar nas pernas dela, até quase fazê -la tropeçar. 
"Saia Fresno!" Ela dizia.
"Falei para você ficar em casa!"
Não demorou para todos que estavam no ponto da condução entenderem, era o cão dela que veio acompanhá-la. Alguns sorriam, outros olhavam confusos.
Nesse monento eu já havia me juntado ao grupo dos passageiros a espera do coletivo e vi mais de perto a cena. A jovem senhora era alta, vestia uma calça social e uma blusa branca, começou a conversar com a vendedora ambulante sobre o episódio.
"Todo dia é isto, a senhora veja só! Ele me segue até aqui!"
"Já sujou a minha calça, Fresno!"
A ambulante sorria. "Ele é bem bonito!" devolveu.
E realmente era. Fresno era de cor chocolate e provavelmente de raça indefinida, pelo curto, olhos de um castanho grande, não deveria ter mais de 2 anos. Agitava a calda freneticamente e encarava sua dona.
Dado momento avistou outro cachorro a distância, pôs as orelhas eretas, empinou-se, observou atento até o possível adversário canino se afastar mais.
Veio o ônibus, dei sinal junto a outro grupo de pessoas, já dentro do veículo escutei um pequeno tumulto na porta.
"Saia, saia! Você não pode subir!"
A dona havia entrado no mesmo ônibus que eu e não havia nada que convencesse Fresno de que ele não poderia embarcar também. O motorista ria, alguns passageiros riam, a senhora a esta altura já estava visivelmente constrangida e Fresno estava dentre as pernas daqueles que subiam a escada do coletivo.
Finalmente conseguiram fazer o cão desistir da ideia, ele se pôs na porta do ônibus, do lado de fora, e de lá fitava sua dona pela janela. Ela o encarava franzindo a testa, tal qual uma mãe encara um menino travesso após uma traquinagem. Mais alguns segundos e o coletivo partiu.
Não era nem 07:00 horas e eu já havia testemunhado naquela manhã a mais genuína forma de fidelidade e amor, vinda de um animal.


Raphael V. Tavares

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Maior do mundo

Quando eu era criança achava que meu pai era o homem mais forte do mundo, porque, dentre outras coisas, ele era capaz de amassar uma tampinha de metal, dessas de garrafa de cerveja, usando apenas os dedos. Isso para mim era o suprassumo da força. O tempo passou, e depois eu passei a achar meu pai o cara mais inteligente do mundo, de memória particularmente aguçada e com aptidão para ciências exatas, eu achava que não tinha ninguém para disputar no raciocínio lógico com ele.

Costumava ser um exímio analista e sempre que era confrontado com um problema ele dividia a questão em partes para então, meticulosamente, solver cada uma delas, isso servia para qualquer problema, inclusive os da vida, não funcionava somente com a aritmética.

Sempre paciente, ele era quem me socorria nos exercícios da escola e foi um excelente professor ao me ensinar a dirigir num Monza 94 sem direção hidráulica, ensinou muitas outras coisas também (e continua ensinando até hoje) tal como a jogar Sueca e as artimanhas do Ping-pong... sim, aqueles eram tempos sem smartphones.
Daí eu passei a achar que ele era o maior professor do mundo.

Tinha frases marcantes que vivia repetindo, algumas impublicáveis outras caricatas. Várias das tiradas que ele proferia refletiam traços particulares do nosso dia a dia e só mesmo nós a entenderíamos, meu irmão se divertia dizendo algumas delas. 

"De doce já basta a vida!", esta ele usava quando alguém lhe oferecia açúcar.
"Cabeça foi feita para pensar, pensar não dói!"
"Deixa que eu deixo, vai que é minha!"
"Quem não tem competência não se estabelece"

Sempre que bebia meu pai fazia facilmente mil novos amigos, carinhoso, distribuía beijos e abraços. Sóbrio era mais reservado, calado, às vezes até sério. Eu herdei dele a característica marcante de não querer falar nem ouvir nada quando acordo pela manhã, o gosto musical também foi uma herança. Cresci ouvindo MPB, agradáveis tardes aos finais de semana degustando Gil, Djavan, em especial Caetano.

Alguns colegas nossos, com quem jogávamos bola na rua de trás, achavam que o meu pai era um Delegado (risos), tamanha a influência e a autoridade que ele exercia na vizinhança.
Ele nunca foi delegado, era somente um servidor público federal, que saia de casa caminhando todo dia para pegar o ônibus até o Centro do Rio, não sem antes fumar 1 ou 2 cigarros e tomar um café na padaria da esquina. Calça social sempre bem vincada, era comum usar camisas de linho, sapatos engraxados era lei. Impressionante como me vejo hoje repetindo as mesmas coisas que o meu pai fazia, com exceção dos cigarros e da facilidade de fazer amizades... lá na minha rua ninguém me confunde com um Delegado. 

Ainda na infância lembro que eu fui uma vez assistir meu pai jogar futebol de salão, no time que ele integrava. No meio do jogo meu pai acertou uma canhota de esquerda na diagonal atravessando a quadra, não me recordo se foi gol, mas lembro do barulho. Nesse dia então eu achei que meu pai tinha o maior chute do mundo.

Certa vez eu precisei passar um mês internado num hospital durante a minha adolescência, meu pai passou uma noite inteira acordado sozinho comigo, me vigiando, porque naquela noite eu tinha passado mal. Nesta ocasião eu achei que meu pai era o maior companheiro do mundo.

O tempo passou e passou, mais e mais, daí meu pai foi percebendo que a vida não era assim tão doce, na verdade ela pode ser bem amarga. Outra frase que ele dizia muito quando a gente se machucava era: "Dói, mas vai passar, o machucado não dói para sempre"
A frase funcionava com os ralados do nosso joelho, mas não servia para tudo. Meu pai experimentou uma dor que nunca mais passou... e nem vai passar. Talvez a maior dor do mundo! 

Porém, ele sobreviveu a essa dor! 
Foi então que eu percebi, depois da infância, depois da criança, depois de todo o tempo, até hoje e até sempre, que na realidade eu sempre tive razão, estava certo desde pequeno, meu pai era de verdade o cara mais forte do mundo!

Raphael V. Tavares


O mal é a ausência do bem, assim como a escuridão é a ausência da luz.
Desta lógica, um dia será inadequado usar a palavra “morte” para falar da situação dos que já se foram, pois que a morte é a ausência da vida, mas aqueles que partiram ainda vivem, numa vida paralela a nossa!