"Não sou este corpo que possui um espírito, mas sou o Espírito que fala por este corpo."

quarta-feira, 30 de março de 2016

Afogados com Aylan

Ele estava ali, caído, inerte, e aquela foto rodou e chocou o mundo. Seus bracinhos miúdos dobravam, molhados pelo mar Egeu na Turquia, e seu rosto sem vida e sem sorriso beijava a areia na praia de Ali Hoca Burnu. Foi por aquele mesmo mar que o pai de Aylan buscou uma fuga, a fuga pela esperança, a fuga de alguém que só tem conhecido dor e guerra, e vendo os seus filhos padecerem de fome não enxergou outra alternativa que não fosse fugir.

Não deu. O barco com os imigrantes sírios fugitivos naufragou, o pai de Aylan não alcançou seu objetivo, Aylan se afogou.

Renata, brasileira, que viu a imagem na timeline do seu Facebook na tela do seu smartphone, também ficou chocada. Chegou a se emocionar sinceramente com a imagem tocante. Mas, como não se interessa por assuntos políticos, Renata não entendeu muito bem o que aquela foto representava, voltou a verificar as notificações na sua timeline e em seguida foi atualizar uma página de “cachorros fofos” ou “soft dogs” que alimenta no seu Instagram.

Márcio, brasileiro, também ficou assustado com a foto de Aylan, chegou a pedir a sua mãe, dona Sônia de 64 anos, que rezasse pelo menino na missa de domingo que vem, na Paróquia do seu bairro. Márcio comentou com seus amigos do escritório que chegou a sentir um aperto no peito diante da imagem, depois Márcio ligou seu computador, foi consultar as páginas fascistas que ele participa, precisava organizar os preparativos para a próxima passeata que pede a volta da ditadura, a passeata pede também que a Presidente Dilma se mate.

As notícias da internet anunciavam o afogamento de Aylan, mas não foi só o pequenino que se afogou, junto com Aylan naufragou seu pai, mesmo tendo sobrevivido ele se afogou com a dor e o desespero, afogaram-se também Renata e Márcio, mesmo que eles não saibam se afogam diariamente com a indiferença estúpida e alienante. Afogamos todos nós, na nossa resiliência passiva que assiste aos inocentes que não podemos salvar.

Raphael V. Tavares

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O mal é a ausência do bem, assim como a escuridão é a ausência da luz.
Desta lógica, um dia será inadequado usar a palavra “morte” para falar da situação dos que já se foram, pois que a morte é a ausência da vida, mas aqueles que partiram ainda vivem, numa vida paralela a nossa!