"Não sou este corpo que possui um espírito, mas sou o Espírito que fala por este corpo."

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Trocador


O Trocador

Passei a roleta barulhenta para adentrar ao coletivo, voltando de mais um dia de trabalho. Não pude então deixar de notar o aspecto abatido e degradante daquele trocador. Sentei num dos bancos da condução, não havia ninguém na outra vaga, assim fiquei com os dois lugares e com um espaço considerável, embora nada confortável. O ônibus estava vazio e eu permaneci ali fitando aquele indivíduo, o trocador, olhos fundos, cabelo desgrenhado, trazia o rosto marcado por expressivas olheiras, rugas profundas. Roupa amassada, mãos compridas e magras com unhas que já passavam do ponto de corte, fechavam aquele cenário aviltante.
Entorpecido pelo sono o cansaço lhe vencia, tombava sua cabeça em breves cochilos, quando então era interrompido por uma freada brusca do veículo, levantando assustado para em seguida cochilar novamente. Há quantas horas estaria trabalhando? Perguntei-me. Muitas, sem dúvida. Teria família? Esposa, mãe, filhos? Aquele homem se mostrava como um verdadeiro trapo humano e era digno de piedade, compadeci-me com o trocador sem conhecê-lo e sem nenhum tipo de ironia ou de deboche.
Algumas pessoas ainda entravam no ônibus apesar do horário avançado, ele, num gesto mecânico, recebia o dinheiro e de um jeito automático entregava algum troco. O ônibus seguia acima da velocidade comum do horário de cedo, passando correndo por buracos e quebra-molas que faziam o corpo inerte do trocador ser lançado sem reação.
Eis que a viagem recebeu como passageiras uma mãe e sua filha, a mãe arrumada parecia voltar de alguma festa, a pequenina dócil em seu colo sorria e observava tudo com olhos grandes e assustados, não demonstrava sono apesar da hora.
Ao passar pela roleta o som característico se fez ouvir, a criança deveria ter cerca de três ou quatro anos e sua mãe lhe suspendia pelos braços pulando o passador para depois girá-lo, demarcando sua entrada.
Naturalmente achando tudo uma grande brincadeira a pequenina ria copiosamente, gargalhava a alegria pura dos anjos. Fiquei contente e agradeci a Deus por ver uma cena tão rica já exausto àquela hora da noite.
Para minha surpresa notei que o trocador não as via, apenas repetia o gesto mecânico recebendo e mal conferindo o valor da passagem. Ele as olhava, mas não as enxergava, a ternura da criança em nada tocava o seu estado indiferente.
Aquilo realmente me espantou, além de lhe retirar o corpo o trabalho lhe furtava também a alma, a sobrecarga do serviço havia lhe deixado num estado latente, estéreo e frio. Até mesmo a mais pura das cenas, do brilho dos olhinhos assustados e da ternura do sorriso de uma criança, passava imperceptível diante dos seus olhos vazios. 
Ele seguia seu estado deplorável, talvez vítima da sua própria luta, a luta individual que cada um de nós carrega diariamente. A criança já estava sentada num dos bancos, no colo de sua mãe, porém continuava a encará-lo como se tentasse conquistá-lo, em vão.
Dessa forma, tive uma pálida noção do preço que a vida cobra pessoalmente de cada sujeito, sobretudo dos trabalhadores que passam despercebidos diante de nós, tal como passamos muitas vezes despercebidos diante deles. Conclui então, que o trocador não vivia, apenas sobrevivia, no seu mundo tragado pelo cansaço e pela amarga rotina.

Raphael V. Tavares


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O mal é a ausência do bem, assim como a escuridão é a ausência da luz.
Desta lógica, um dia será inadequado usar a palavra “morte” para falar da situação dos que já se foram, pois que a morte é a ausência da vida, mas aqueles que partiram ainda vivem, numa vida paralela a nossa!