O Trocador
Passei a roleta barulhenta para adentrar
ao coletivo, voltando de mais um dia de trabalho. Não pude então deixar de
notar o aspecto abatido e degradante daquele trocador. Sentei num dos bancos
da condução, não havia ninguém na outra vaga, assim fiquei com os dois lugares
e com um espaço considerável, embora nada confortável. O ônibus estava vazio e
eu permaneci ali fitando aquele indivíduo, o trocador, olhos fundos, cabelo desgrenhado,
trazia o rosto marcado por expressivas olheiras, rugas profundas. Roupa amassada,
mãos compridas e magras com unhas que já passavam do ponto de corte,
fechavam aquele cenário aviltante.
Entorpecido pelo
sono o cansaço lhe vencia, tombava sua cabeça em breves cochilos, quando então
era interrompido por uma freada brusca do veículo, levantando assustado para
em seguida cochilar novamente. Há quantas horas estaria trabalhando? Perguntei-me.
Muitas, sem dúvida. Teria família? Esposa, mãe, filhos? Aquele homem se mostrava como um verdadeiro trapo
humano e era digno de piedade, compadeci-me com o trocador sem conhecê-lo e sem
nenhum tipo de ironia ou de deboche.
Algumas pessoas
ainda entravam no ônibus apesar do horário avançado, ele, num gesto
mecânico, recebia o dinheiro e de um jeito automático entregava algum troco. O
ônibus seguia acima da velocidade comum do horário de cedo, passando correndo
por buracos e quebra-molas que faziam o corpo inerte do trocador ser lançado
sem reação.
Eis que a viagem
recebeu como passageiras uma mãe e sua filha, a mãe arrumada parecia voltar de
alguma festa, a pequenina dócil em seu colo sorria e observava tudo com olhos
grandes e assustados, não demonstrava sono apesar da hora.
Ao passar pela
roleta o som característico se fez ouvir, a criança deveria ter cerca de três
ou quatro anos e sua mãe lhe suspendia pelos braços pulando o passador para
depois girá-lo, demarcando sua entrada.
Naturalmente
achando tudo uma grande brincadeira a pequenina ria copiosamente, gargalhava
a alegria pura dos anjos. Fiquei contente e agradeci a Deus por ver uma cena
tão rica já exausto àquela hora da noite.
Para minha
surpresa notei que o trocador não as via, apenas repetia o gesto mecânico
recebendo e mal conferindo o valor da passagem. Ele as olhava, mas não as
enxergava, a ternura da criança em nada tocava o seu estado indiferente.
Aquilo realmente
me espantou, além de lhe retirar o corpo o trabalho lhe furtava também a alma,
a sobrecarga do serviço havia lhe deixado num estado latente, estéreo e
frio. Até mesmo a mais pura das cenas, do brilho dos olhinhos assustados e da
ternura do sorriso de uma criança, passava imperceptível diante dos seus olhos
vazios.
Ele seguia seu
estado deplorável, talvez vítima da sua própria luta, a luta individual que
cada um de nós carrega diariamente. A criança já estava sentada num dos bancos,
no colo de sua mãe, porém continuava a encará-lo como se tentasse
conquistá-lo, em vão.
Dessa forma, tive
uma pálida noção do preço que a vida cobra pessoalmente de cada sujeito,
sobretudo dos trabalhadores que passam despercebidos diante de nós, tal como
passamos muitas vezes despercebidos diante deles. Conclui então, que o trocador
não vivia, apenas sobrevivia, no seu mundo tragado pelo cansaço e pela
amarga rotina.
Raphael V. Tavares
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